1 de maio de 2016

Carta de amor e despedida

Revi-as todas, de rajada, como se quisesse que a saudade me entrasse rapidamente pelos olhos dentro, na tentativa de que a dose me matasse sem possibilidade de me ressuscitar de novo para isto. Não sei que vazio é este que se enche de ti a cada lembrança, a cada pormenor dos dias que moem. Apetece-me bater à tua porta e obrigar-te a acolher-me no teu abraço do qual deserdaste o meu peito. Fazer-te pedir desculpa até eu acreditar. Ter a resposta para os meus porquês.
O que é que eu faço ao futuro que imaginei contigo?
Talvez o entregue nas mãos de alguém que me queira de verdade. Que finja ter as certezas que tu nunca tiveste. Mas eu não consigo tirar-te de dentro. A angústia de habitar a mesma cidade contigo e de nunca mais trilharmos os mesmos caminhos. O som dos meus passos solitários na calçada e aquele silêncio de quem vai sozinho. Tudo parece ter o tamanho desproporcional da visão periférica. Tudo a passar-me pela cabeça. Eu vou aí e obrigo-te a gostar de mim, como fiz das outras vezes todas. Faço aquele truque em que tu te iludes com isso durante uns meses e fica tudo bem só mais esta vez.
E depois estamos juntos a tirar o pior um do outro, eu a tentar mudar-te e tu a contrariar todas as minhas opiniões. Juntos porque não vamos saber como estar de outra forma, certos de que o fim chegará sempre. A correr desse momento de mãos dadas com força e a chorar do nosso próprio amor que teima em renovar-se e a destruir-se a cada estação. Eu sei que não posso estar contigo. Tu sabes que eu não preencho os requisitos. Somos muito imperfeitos, e muito mais juntos. Mas se me tocasses só aquela canção na guitarra para afastar o monstro dos meus lençóis, valia a pena mais umas lágrimas. Tantas quantas quisesses. E assim deitas por terra o meu orgulho encapotado e fazes-me regredir à crueza de quem realmente sou.

Por isso diz-me adeus de uma vez por todas. E eu olho-te de soslaio a troçar da minha própria altivez.

7 de fevereiro de 2016

Antes que fique noite

O amanhã é um passado não vivido.
Entre um e outro estamos agora. Estávamos, que já passou.
A viver a ilusão de sermos donos de nós e disto que nos habita e nos faz mover em frente. Ou da marioneta que se mexe sempre em função do fio condutor.

A faísca no meio daquilo que nos impulsiona e o que nos puxa para trás chama-se vida. E não é nossa. Mas podemos pedi-la emprestada e ir dar umas belas dumas voltas antes que fique noite.
Sempre me achei uma miúda mediana, passo as aliterações. Mas a tua astúcia é uma hipérbole. Deixo-me de metáforas, aliás, de merdas, e admito que gosto de ser cortejada. Pronto.


7 de março de 2015

Graça



Esta Graça é minha. Nunca hei-de compreender a amplitude de todos os azulejos e buracos da calçada quando me atrevo na Rua das Beatas. Todos os dias os planos mudam nas equações celestes pelas quais se rege Lisboa. Ainda ontem aquele prédio não era tão amarelo. Se a minha rua fosse um tabuleiro os peões jogavam a preto e branco mas também em azul e verde. A cartografia das vidas exige uma determinada sépia quase involuntária, a que não temos acesso fácil. Insinua-se no canto dos olhos em socalcos onde sabes que correram lágrimas. Nos cumprimentos apertados em demora. Nos colarinhos engomados a preceito. Naquele olhar de soslaio da vizinha do rés-do-chão. Ou no cândido “Bom dia, como tem passado?” do bêbado que, de manhã, sai de casa fresco e volta em angulação triangular do corpo com o vão de escada. As camadas de castanho dissolvem-se a cada renovado acordar porque a luz de Lisboa obriga até os velhos a articular em todos os tons. Esta cidade agita-nos muito cedo. Começa com um ranger de madeira velha. Mas rapidamente trepida nos paralelos, exala no cheiro a pão fresco. Invade. Entra pela tua casa a dentro com o sol para se acomodar em ti e te moldar os sentidos. Lisboa é feito de luz e sombra. Mas mais luz. Buzina. Falta alto. Ora carrega nos érres ora diz ou-câi. Restolha. Floresce nas amendoeiras. Pinga das fontes.
Estou sentada num banco castanho. A sépia é isto. É secular. Já cá estava antes. Fundou a esteia do que é hoje. Alguém que nasceu noutra parte do mundo sentou-se ao meu lado. É uma rapariga bonita que me sorriu. Agora que respiramos o mesmo ar, podemos estar dentro do mesmo retrato. Lisboa é nossa. É errado pensar que poderia ser apenas minha só porque demoro mais a minha vida nela. Gastamos todos as solas no seu corpo e ela deixa-se pisar. Pensamos nós. Apenas somos atraídos pela gravidade autónoma que recusamos reconhecer-lhe. Lisboa só tinha que ser uma mulher.
À medida que o sol queima os últimos cartuchos e dobram os sinos no miradouro, acorremos todos aonde ainda se espalha a cor. Marchando em direcção à vida, com pressa de nos extinguirmos em luz, antes que a noite nos absorva e todos voltemos à cegueira sentenciada pelos bairros. À noite manda a Severa, uma Lisboa rendilhada que te oferece copos de vinho tinto.
Sigo mais a sul, onde as ruas deixam de ter Graça. Volto mais tarde, emparedada em ti para que me beijes o corpo com o veludo de uma noite breve.

6 de março de 2015

Efemérides feministas



E agora vamos todos cantar uma ode às mulheres.
Queremos mesmo ser iguais? Ou passou isto a ser apenas uma ridícula busca de aceitação? Ser igual não é bom, minhas senhoras. É um desastre. Aliás, é por não sermos iguais, numa primeira instância, que existe uma fusão de gâmetas que permite que andemos a povoar o planeta. Mas posso até deixar-me de fazer referência às óbvias diferenças físicas e palpáveis. Qual é mesmo a razão pela qual queremos ter um salário melhor? Porque merecemos ou porque queremos largar um infernal “incha porco” assim que consigamos os mesmos direitos financeiros? Queremos ser pénis de saltos altos, é o que me parece. Não me considero melhor nem pior que nenhum homem, ou que nenhuma mulher. Quando saio de casa para trabalhar vou convicta de que aquilo que eu vou fazer vai mudar a vida de muitos homens e mulheres. À semelhança de muitos homens, presumo, meus semelhantes. E semelhança não é igualdade.
Esta semana ouvi uma senhora de idade dizer: “Não se pode falar a verdade aos homens. Podemos dizer a verdade em tom de brincadeira e desmenti-la logo de seguida. Dizer – acha que eu estava mesmo a falar a sério?”. Riu-se timidamente. Depois assumiu um ar pensativo e até um pouco comiserativo… “Porque eles vão assustar-se quando falarmos a sério. Não se pode dizer a verdade aos homens, eles não estão preparados para ouvir”.
Será por isso que eu tenho tanta dificuldade em dizer: “Gosto de ti?”. Em sentir. Às vezes quem usa os túbaros sou eu. Ganho mais. Trabalho mais. Tenho mais. Penso mais. Atrevo-me mesmo a dizer que sou melhor em muitos aspectos. A verdade é que eu gostava que alguém, um homem, neste caso, me acompanhasse e construísse um projecto de vida comigo. Me aceitasse em toda esta minha capacidade de fazer por mim e chegar a algum lado.
Ser feminista ainda não me ajudou em absolutamente nada. Ainda não chegou o homem que me provasse que tem sido uma perda de tempo sê-lo. Que me tirasse os saltos altos, me deitasse no colo e dissesse ao meu ouvido: “Podes ser frágil de vez em quando comigo”. Só aí é que eu vou sentir-me igual. Perdão. Semelhante.

10 de janeiro de 2015

Reflexo


A madrugada começou com um suor frio que desceu pela última fila de cabelo e se alojou na minha nuca. Onde eu não o via, só lhe adivinhava a presença. Ele ali estava, num espaço que eu não vejo mas sei que é meu. A representação física de medo. Levantei-me da cama com os pés de encontro à madeira, à procura de algum chão, e caminhei até ao espelho mais próximo. O cabelo preso num amontoado desmaiado no temporal, os olhos semi-abertos, pálida e acabrunhada, numa ante-estreia matutina. A mão esquerda em suporte do peso anteriorizado e a mão direita sobre o baixo-ventre. Liso. Não sei se respirei fundo para sorver o ar do fim do esforço ou para me certificar de que este era o lado correcto da vida. Ainda agora tinha acabado de dar à luz um bebé perfeitamente saudável, a frase que mais repetidamente se ouve nas séries de têvê. Tiraram-mo. E eu acordei. Acho que não suportei viver com a sequela desse acto. E então, boca a arder de secura, bebi água. Engasguei-me com a vida. Tão inconscientemente presente na banalidade das horas marcadas: andar, comer, trabalhar, farda, tratar, dormir, fazer mais, correr, comer. Parar.
Parar.
PARAR.
Escutar.
Medo.
Silêncio.
Mais medo.
Eu. Sozinha. 29. Um sobressalto do ser. Dúvida. Melhor, incompreensão. As ideias todas muito bem alinhadas e alinhavadas no curso da minha história. Várias bocas a acrescentar a sua vírgula e eu a tentar juntar tudo na minha vontade. A narração foi-se desfazendo e refazendo enquanto o meu corpo tomava formas. Perdi-me logo no primeiro acto. Eu não tinha o guião. Devo ter entrado na peça errada, subiram a cortina e eu tive de entreter o público com uma representação que satisfizesse a mais exigente crítica - eu. Eu não aplaudo. Apenas eu estava sentada na audiência, logo ali, na primeira fila. E olhei-me de alto a baixo, com um ar apreensivo. Sem saber porque é que no meu lugar estava uma rapariga tão séria, envergonhada e hesitante. Tinha um aspecto interessante, boa figura, enchia o espaço com um olhar. Mas simplesmente não me convenceu. Não tinha a graça espontânea a que me habituou e defraudou as minhas expectativas. Eu que só queria ver honestidade. Senti-me sentida. Fui eu que escolhi esta pessoa para me representar, uma péssima versão estilizada de mulher que, sob um foco de luz, fez de tudo para se encher de si mesma e me impressionar. O decréscimo ronceiro de espontaneidade na acção. Aquele olhar franzido no final, à espera que eu lhe diga como fazer, se foi bom ou mão. Faço-te um teste. Silêncio. Espaço. Auto-avaliação. Olho-me ao espelho mais uma vez. Está do outro lado alguém que eu conheço. Tem sonhos. Corre, e não certeira de lhes chegar a poder tocar, corre porque sente a brisa do vento fresco no rosto e é livre de correr na direcção que quiser. Tem medo como eu, mas encolhe os ombros e sorri-me. Retribuí quase em simultâneo.
Ainda há pouco me negavam uma vida. Uma nova vida, que nasce dentro. Que não era como eu. Que levou uma palmada e chorou numa explosão pulmonar, em manifesto de justa causa, no primeiro cumprimento ao mundo, a apresentação sumária da existência foi sonora. Fez-se sentir. Voltei a deitar-me. Mais serena. O amanhã está determinado.
Abri os olhos para um novo mundo. Já não está ninguém na plateia.

1 de janeiro de 2015

Pôr-do-sol visto da minha janela



Há algo de amargo neste fim que tarda na boca e no peito. O cenário muito desenquadrado. Miopias do coração. Não vejo o fim que já terminou. Mas também não sei onde começa o início. Sei que tracei o futuro e deixei-te pendente no ponto final das minhas palavras. Equilibrado nessa bolinha preta que é um ponto final. Ainda tentaste controlá-la por algum tempo. Mas magoaste-te no último passo de malabarismo. Depois de tudo, já te abracei tantas vezes, deitei a tua cabeça no meu colo e disse-te que tudo ia correr bem. Despenteei-te a melena só para a ordenar de novo. E falei-te do futuro com certezas e determinação. Parecia eu e tudo. E parecias tu, sossegado no embalo dos meus braços. Tranquilos. Mas quando abro os olhos e tento ver o enquadramento, procuro-te dentro da moldura e não estás. Fui eu que desenhei outra coisa. Onde só se vê o sol ao fundo e o meu pé à frente do outro. Tu não estás. Ficaste atrás a dizer-me um adeus muito contido. Ficaste pequenino à medida que eu avancei. Guardaste contigo os meus dias seguros, os meus passos em ziguezague, a minha forma estranha de misturar o açúcar no café e o pouco jeito que tenho para sorrir quando acordo. Promete que um dia abres essa caixinha e deixas que voltem para mim. Para que eu possa ser eu só com a nossa doce memória. A saudade é um sentimento que dói mais que os outros todos. Mais que o amor. Provavelmente irias contrariar-me. Mas eu sei que assim é. A saudade só existe porque o passado foi bom e porque não pode voltar-se atrás e remendar-se. O remendo é sempre uma aproximação esquisita ao antigo, ao primeiro instante. Antigamente, quando tínhamos os relógios acertados, os ponteiros agiam a favor do tempo. Eu corri. Corrijo. Fugi. E o tempo parou, suspenso num momento voltado para dentro, para o mais fundo de mim. Ninguém sabe onde ele fica e eu fechei-te a porta. Não estou preparada para a abrir. Quero ficar em casa só, mercê do silêncio das paredes que ergui. A cada gaveta que abro vejo uma falha na construção.. Descubro que não sou perfeita e que nem sempre sei fazer o bem, como eu via nos desenhos animados. E eu que julguei que nunca mais me esquecia. Gostar de ti não chega para te dar a chave. Não agora. Agora que eu acho que posso gostar de mim aqui dentro, com as minhas gavetas cheias de mim, bonita ou feia. Com aquela janela onde vejo o sol. E sei que posso pôr um pé à frente do outro, sem te dar a mão. Mas a sorrir-te. Na eternidade que só a ternura permite.

16 de setembro de 2014

Máscara


A face do medo

É suja, é grotesca

Agarra-se a estranhos

Numa sucção dantesca

 

Diz mal de quem teve

Do próximo e do que há-de vir

Não é mais do que o vazio

Que antevê no porvir

 

Maltrata, estiliza, goza

Inveja, cobra e desdenha

Sem fraque ou farpela

Que lhe justifique a façanha

 

Faz gaúdio do pouco que vale

Sobe o queixo de fraca figura

Arreganha o sobrolho,

Cospe na fervura

 

Não põe a mão no peito

Não contesta o que projecta

Não sabe que o outro

Lhe adivinha a intenção abjecta

 

Por isso definha

Numa vida de existir

A caminhar, a respirar

A sofrer, a extinguir

 

O circo já terminou,

Os palhaços abandonaram a cena

O medo ficou sozinho

Num futuro que dá pena

 

E das cinzas do fim dos dias

Ergue-se a justiça devida

A face do medo

Foi quem perdeu a vida